A Escola, Gestão, Estudantes Nativos Digitais: Perspectivas e Desafios no Campo Educacional (I)
A escola: que campo escolar é esse?
A escola como espaço caracteriza-se por um prédio com condições de receber dignamente, ou pelo menos deveria ser, os estudantes que chegam até ela. Certo, até que neste espaço estejam seres humanos, agentes sociais capazes de interagir socialmente, capazes de mediar conhecimento.
Nesse sentido, a escola se transforma num campo de forças, de conflitos em que emergem todos os tipos de situações, considerando que nesse lugar são seres humanos interagindo. Uma escola que há pouco tempo se mostrava capaz de ser um espaço de relações respeitosas em que o professor, da forma que conseguia, “transmitia” o conhecimento que era de sua formação e capacidade. Eu digo transmitia, pois era o que sabíamos fazer mesmo. Vou me colocar nesse universo, pois as minhas quatro décadas de sala de aula iniciaram dessa forma.
Ainda regidos pela Lei 5692/1961, substituída posteriormente pela Lei nº 9394/1996, em que a perspectiva era a preparação para o trabalho, o foco era a repetição até a exaustão. Não sei explicar como. Mas nossos estudantes aprendiam. Acredito que a perspectiva de disciplina extrema e a configuração de escola fazia com que os estudantes estudassem mais.
A escola não era muito diferente da configuração de hoje, considerando que as salas continham um grande número de estudantes, todos enfileirados, cada um com seu material de estudo. Entretanto o nosso estranhamento e indignação diante da configuração de escola nos propõe refletir.
Passos e Carvalho (2013, p.89) inspirados em Carlos Drummond de Andrade remetem-nos a um “tipo de memória que se dá num fluxo temporal, não linear e que, por isso mesmo, não se prende à totalidade das coisas ou dos fatos acontecidos, mas antes no detalhe significativo e subjetivo que, quando evocado, nos faz viver/reviver/ver o todo”. Essa memória de escola seguiu a margem de uma sociedade em constante evolução, cuida de seu campo escolar numa tentativa de preservar as relações e forças que ali adentram. Num movimento de não olhar para a transformação que está ocorrendo no mundo lá fora, sem perceber a permeabilidade dos seus muros. Mais além, a escola que trata todos igualmente, no seu percurso sem perceber os desiguais, já está levando à desigualdade diante da cultura extramuros.
Bourdieu (2011, p. 53) afirma que a “igualdade formal que pauta a prática pedagógica serve de máscara e justificação para a indiferença no que diz respeito às desigualdades reais”. Portanto, a escola como campo escolar em que atuam e interagem agentes deve estar atenta às transformações da sociedade em constantes ajustes. Essa escola que se transforma lentamente sob o olhar atento da sua comunidade, como se quisesse respirar novos ares, enfrenta dificuldades básicas de organização. Não por sua vontade, mas por vontades externas de políticas públicas e propostas pedagógicas esvaziadas, comunidade escolar desinteressada das questões educacionais.
Dessa forma, essa escola tão questionada por todos aqueles que se acham no direito de palpitar sem conhecimento, sustentados apenas pelo senso comum, sem conhecer de fato esse campo tão específico luta para se manter tradicionalmente estabelecida. Mas, ..., num mundo que respira tecnologia, será que as práticas pedagógicas, de gestão estão acompanhando? Num mundo em que o conhecimento está posto em todos os espaços, falo de conhecimento, não de informações, pois, estas estão para todo lado, mas o conhecimento científico, que proporciona ao cidadão a sua cidadania, participação e tomada de decisões, essa escola consegue interagir com esse mundo? E os estudantes querem entrar nesse mundo? Aprender sobre as ciências que desenvolvem tanta tecnologia?
Num passado muito recente passamos por um enfrentamento sério quando fomos obrigados a “ficar em casa”. Dificuldades de toda ordem, não somente pela sociedade que não está conectada com o conhecimento, mas uma escola sem condições de operar minimamente com os recursos tecnológicos. Voltamos à máxima de uma escola que não consegue acompanhar a fluidez tecnológica e ainda reluta em aceitar as possibilidades desses recursos pedagógicos.
Repensemos, ...
[...] o fato é que a tradição pedagógica só se dirige, por trás das ideias inquestionáveis de igualdade e de universalidade, aos educandos que estão no caso particular de deter uma herança cultural, de acordo com as exigências culturais da escola. Não somente exclui as interrogações sobre os meios mais eficazes de transmitir a todos os conhecimentos e as habilidades que a escola exige de todos e que as diferentes classes sociais só transmitem de forma desigual, mas ela tende ainda a desvalorizar como “primárias” (com duplo sentido de primitivas e vulgares) e, paradoxalmente, como “escolares”, as ações pedagógicas voltadas para tais fins (BOURDIEU, 2011, p. 54).
Nesse sentido, voltamo-nos novamente ao papel de uma escola que não vai acabar isso é fato, mas que precisa se revisitar, repensar a sua organização diante de políticas públicas que cobram eficiência em nome de notas, ranking, observando que avaliações em larga escala, propostas por meios além dos muros da escola, não avaliam todos os ambientes da mesma forma. A escola sobrevive também mediante a herança cultural de onde ela se encontra instalada, e não poderia ser avaliada por políticas externas. Um campo de tensões onde a exigência pelo cumprimento de metas obriga a um treinamento, em detrimento do conhecimento. Uma escola que enfrenta cobranças diárias de resultados que não representam o real conhecimento dos agentes que interagem apenas como meros “transmissores” de programas prescritos, muitas vezes, necessários, mas tratados de forma desigual, sem considerar as necessárias práticas pedagógicas. É necessário cumprir o programa.
Infelizmente, é a visão do senso comum que orienta de modo geral as políticas públicas em educação, entre nós, com o agravante de que as próprias metas do ensino têm se reduzido a rudimentos de Matemática e Língua Portuguesa que são pretensamente aferidos por meio de duvidosos sistemas de “avaliação” em ampla escala como o Saeb, a prova Brasil, etc., cuja principal função tem sido escamotear ainda mais os reais problemas de nosso ensino. (PARO, 2015, p. 64).
Refletimos também essa escola que ensina num mundo diferente de quarenta anos atrás e que ensina a quem, quem, para quê, o quê, como? Uma escola que está pedagogicamente em função do social, mas que não consegue fazer seu trabalho pelo contexto que se insere. Questiona por ser parte desse campo de tensões, sobre qual a sua finalidade, quais as competências necessárias à vida pessoal, ao viver em comunidade e principalmente na vida profissional do indivíduo, são requisitos indispensáveis ao ser humano.
E chega novamente ao aligeiramento dos processos em que transmissão parece ser o primordial. Entretanto, é preciso analisar quem são os agentes desse lócus privilegiado em que a transmissão não pode ser o foco, quando lidamos com formação de personalidades humano-históricas, seu objeto é cultura em sua integralidade: conhecimento, valores, arte, crenças, ciência, filosofia, tecnologia, direito, enfim, tudo o que é produzido historicamente. Por que na relação ensino e de aprendizagem não há nenhuma transmissão, seja de conhecimentos, seja de qualquer outro elemento cultural, por parte do educador... o que há é uma apropriação... O educador propicia as condições, ensina e o estudante se apropria, aprende.
Onde não há tempo para esse movimento é muito difícil que a aprendizagem ocorra. E o que produzimos é uma geração vazia de conhecimento, adultos que leem sem saber o que estão lendo, sem compreensão.
Mas estamos refletindo sobre a escola. Que está imersa nesse emaranhado conflituoso de dificuldades e possibilidades. O que atender primeiro? Um sistema que cobra números? Uma sociedade tecnológica que pode trazer contribuições para uma escola que merece ser respeitada.
Tem jeito sim. Basta mediar as atrocidades que chegam, a forma de cobranças e entender que no campo escolar quem interage são seres humanos ávidos pelo conhecimento. Seres humanos que são nativos digitais de uma sociedade em constante transformação. Seres humanos que necessitam de conhecimentos tratados pedagogicamente dentro de uma escola, seja ela, física, de concreto, onde a ambiência escolar se estabelece de forma presencial, pelo toque, pelo contato humano.
Num mundo em que a tecnologia está posta e o conhecimento está em toda parte, o conteúdo específico pode ser mediado não somente entre paredes. Mas, também é possível estabelecer relações de ambiência escolar quando as interações são realizadas virtualmente. Aí são necessárias condições para que esse processo se estabeleça. Mas é possível.
Por que as escolas insistem em continuar segregando crianças e jovens entre paredes ao invés de olhar ao seu redor e perceber que o mundo já não é mais aquele retratado por Chaplin em Tempos Modernos? Qual é o sentido de tratar todos como se aprendessem da mesma forma, no mesmo ritmo, repetindo exaustivamente a tabuada até que decorem a lição, ao invés de estudar por meio de atividades práticas e lúdicas?
Enfim, assunto que não se esgota, pois “educar não é apenas explicar a lição ou expor um conteúdo disciplinar, mas propiciar condições para que o educando se faça sujeito de seu aprendizado, levando em conta seu processo de desenvolvimento biopsíquico e social desde o momento que nasce” (PARO, 2015, p. 49). Por isso, sempre a construção e reconstrução deve estar presente no campo escolar de maneira que reconfigurações estruturais e pedagógicas para agregar os estudantes indistintamente, sejam permanentes.
Há que se pensar também no papel do professor e do gestor dessa escola imersa em contradições oriundas do seu contexto e sociedade.